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sábado, 1 de junho de 2024

Kepler-452b - Parte 1

 Cap. I - A Mensagem
Ao acessar aquele arquivo o astronauta teve acesso a um logo e confuso monólogo, de alguém que não mais respirava e existia. Era um registro até mesmo insano, onde as ideias iam atropelando os pensamentos. O áudio que seguia era também meio assustador. Nele se podia ouvir: "O meu nome é John. Nome comum, nada especial. Apenas um nome. Atualmente trabalho numa empresa de transportes inter espacial. Minha formação foi de engenharia mecânica, mas não encontrei emprego na minha especialização. O jeito então foi me virar. Acabei aceitando entrar na empresa que primeiro aceitou me ofereceu um serviço. Em 2873 ter um emprego é um verdadeiro milagre. O planeta Terra virou uma lata de lixo. Superpopulação e muitos problemas. Grande parte dos jovens se dedicam a atividades criminosas. Virou profissão. Os juízes são comprados e os governos socialistas que dominam o globo apenas criaram uma elite burocrática formada por propineiros e corruptos. Quem tem dinheiro domina esse pobre e infeliz planeta.

Já a elite financeira do capital parasitário foi embora, para as estrelas. Os avanços da ciência foram amplos, principalmente no século anterior. As enormes distâncias espaciais foram vencidas. Hoje em dia uma viagem rumo a um exoplaneta habitável é corriqueiro, habitual. Desde é claro que você tenha dinheiro suficiente para comprar uma passagem ou então ser uma mulher bonita. Mulheres bonitas ainda são valorizadas, principalmente se você vai embarcar numa viagem que dura dois anos terrestres. Claro, todas elas são submetidas a um regime servil, com base em prostituição. São garotas sexuais, nada mais. A maioria é bem simplória mesmo, burras. A educação virou item para apenas famílias milionárias. A única chance de uma garota pobre cair fora da Terra seria mesmo por sua beleza e ardor sexual, nada mais.

Kepler-452b é o destino final da minha viagem. Estou há onze meses no espaço. Viajo sozinho, levando equipamentos de manutenção para uma das bases coloniais no planeta. Esse foi um dos primeiros a serem descobertos pela ciência, lá pelo distante e primitivo século XXI. Hoje sabe-se que é um planeta rochoso, até adaptável para a vida do ser humano. A atmosfera é rala, mas renovável e o mundo tem uma primitiva vegetação, que garante um suporte de vida para seres inferiores. Não há vida inteligente, só os humanos, se bem que não diria bem que nossa espécie é o suprassumo de inteligência e coerência nesse vasto universo.

Pessoalmente nunca quis ir embora para Kepler. Não é o melhor dos mundos, é apenas um dos possíveis atualmente. Há muitas tempestades de areia e a radiação torna certas regiões inabitáveis... não é um resort de luxo. Talvez daqui mil anos se torne um lugar melhor, até que a raça humana jogue tudo no lixo novamente com guerras, ideologias de ódio e genocídios. Além disso o clima em Kepler é ruim, tem muitas variações de temperatura a cada dia. O sol de lá, chamado pelos cientistas de Kepler 452 (claro, seu idiota!) pode transformar os planaltos quentes como o inferno, mas tudo também pode mudar, gelando ao extremo polar em apenas algumas horas. Inferno, inverno, verão...Pensando bem, que lugarzinho miserável esse...

A vida é uma porcaria. Tenho consciência disso. Navegar pelo espaço sozinho, tendo apenas os corredores mal iluminados para compartilhar sua solidão, aumentam essa sensação. Muitas vezes você se pega pensando, pensando... fazendo um balanço nada louvável de suas conquistas e suas derrotas. Não é um exercício de prazer, muito pelo contrário. Quem suportaria? Para matar o tédio escrevo essas palavras ao vento...

A nave que estou não é grande coisa. Claro, é uma boa máquina espacial, robusta e forte, ideal para o trabalho pesado, mas fora isso nada demais. Eu tenho quatro ambientes para viver. A sala de controle, com uma mesa e uma pilha de maquinários para decifrar. Um pequeno quarto com cama que mais parece um submarino, uma nave auxiliar para situações de emergência, do tipo a nave vai explodir e você tem que ir embora para salvar sua vida e uma pequena “academia” para se exercitar. Ficar muitos meses no espaço, sem exercício físico, pode atrofiar seus músculos. Isso é muito ruim, pode ter certeza.

Na maior parte do tempo eu tenho que usar uma roupa especial para evitar que certos tipos de radiações que ultrapassam o titânio da nave me atinjam de alguma forma. Uma prevenção, só isso. É uma roupa que me aperta na virilha e me deixa desconfortável. Os testículos sofrem um bocado. Então eu vou checando os controles diariamente em rondas que são feitas de 3 em 3 horas. No resto do tempo eu leio, reflito sobre minha vida, espero o tempo passar. Vejo um pouco de internet e espero, espero, espero. No fundo ser um astronauta operário é um exercício de paciência, de esperar, esperar... e torcer para que nada dê errado. Por exemplo, um incêndio, por menor que fosse, me mataria em apenas poucas horas. Ele consumiria o oxigênio, me mataria sufocado. Uma morte terrível.

Mas, não vamos falar de morte. Isso é bem perigoso. Ultimamente eu tenho sentido um certo desconforto, um certo receio. É uma espécie de tontura leve que não vai embora. Se eu me levantar de uma cadeira com velocidade é bem capaz que eu perca meu equilíbrio. Talvez isso seja causado pela minha mania de coçar os ouvidos. Isso atinge o ouvido interno, levando a uma labirintite não diagnosticada. É uma sensação ruim. Certa vez quase caio e tive que ficar sentado, pensando em outra coisa para não me prejudicar. A mente é poderosa. Se você pensar em algo ruim é bem provável que isso aconteça mesmo. Penso que a mente tem poder de criar bem ou mal estar. Pensou, sentiu... Filosofia barata...

A solidão é boa algumas vezes. Não subestime o poder do silêncio. Eu tive um pai que havia sido criado por um homem obviamente limítrofe. Ele colocava todos os filhos em estado de alta tensão. Isso criou uma ansiedade que aniquilou essas pessoas na vida adulta. Ficaram todos ansiosos e neuróticos. Não conseguiam viver em silencio e nem conseguiam dormir bem à noite. Uma vida infernal. E eles criaram uma imagem altamente positiva do maldito que os criou. Deve ter sido algum tipo de proteção psicológica. É um tipo de auto elogio. Eu elogio meu pai, mesmo que ele fosse um desgraçado, só para indiretamente me auto elogiar. Olha como sou de uma família nobre, digna! Bobagem, você é só mais um nesse vasto, vazio e frio universo.

Olhando pela janela da nave aliás faço também esse exercício do divino. Se Deus existe porque ele fez um universo tão amplo, tão vazio e tão hostil? Milênios depois que a humanidade tomou consciência de sua própria existência miserável, ainda nos perguntamos porque somos os únicos seres inteligentes do cosmos! Por que Deus desperdiçou tantos planetas, tantas estrelas, em vão. Qual é a finalidade de uma estrela como VY Cma, se ela no fundo não serve para nada? É um mega-astro que não tem vida por perto, não gera calor e nem energia para nenhum ser vivo. Existe por existir! Pensando-se na mente de Deus fico mesmo na dúvida – por que Deus teria feito um colosso como aquele para absolutamente nada! Seria um exercício de egocentrismo em nível cósmico? Não sei, não sei, sou apenas uma poeira nesse vasto vazio. Nem sei porque existo, qual é a minha finalidade nesse meio. Minha nave seria engolida facilmente por esse monstro. Tudo iria virar átomo em segundos. Eu não sou nada diante daquilo. Pelo menos tenho a capacidade de pensar sobre isso.

Hoje até estou bem inspirado para divagações. Mas voltemos para minha viagem. Cá estou eu, no meio de um monte de equipamentos. Na colônia eles vão servir para tornar a vida por lá mais suportável. Não que seja uma colônia de férias. Kepler 452-b tem um cheiro de ovo podre. Pelo menos foi o que me disse a Silvia. Bela fêmea. Como solteirão não penso em me casar. Não quero, como dizia Machado de Assis, deixar para meus filhos a herança da miserável vida do ser, mas com uma loirinha como aquela, olha, colocaria toda a filosofia de bolso... no meu bolso. Gatinha suprema, olhos azuis, magrinha, rostinho de anjo. Pena que também nasceu com dedo podre para parceiros. Namorou e casou com um sujeito sem futuro, um matuto de interior. Vai passar o resto da vida trabalhando para sustentar os filhos e a ele próprio, claro. Alguns homens são perdedores por natureza, embora consigam casar com mulheres interessantes, não me perguntem como!

A Silvia ficou para trás. Ficou na Terra. Ainda penso nela muito de vez em quando. Não fui apaixonado, apenas tinha uma certa atração sexual por ela. Queria levar para a cama. Como era uma mulher com temperamento muito forte penso que um relacionamento a longo prazo teria sido cansativo. Além disso ela tinha uma certa pose de superioridade sobre mim, simplesmente por ser mais rica. Era filha de médica numa vila interiorana. Nesses lugares esse tipo de gente é idolatrada pelo povo. No meio de uma caldeira de fogo – como era essa cidade – ser um médico era quase como ser um Deus.

A Silvia tinha dedos alongados. Adoro dedos alongados. Traz para as mulheres uma certa personalidade. Mulheres fortes. Seu único defeito físico eram as pernas, que nos chamados tornozelos eram largos demais. Dedos alongados conseguiriam sobrepujar tornozelos de elefante? Daí uma boa discussão filosófica-existencial-sexual-petulante! Valha-me Deus, estou delirando nesse tédio do espaço. Ok, é uma forma de passar o tempo. Nossa mente pensa em coisas importantes, mas apenas um por cento do tempo. Nos outros 99 por cento é bobagem. Por isso a humanidade é uma trajetória de atos absurdos, decisões estúpidas e... tenho que parar meus pensamentos. Estou recebendo uma nova mensagem no computador da nave... O que seria?

Foi então que eu percebi que eu não conseguia pegar o equipamento. Minha mão ultrapassava a matéria! Meu Deus... o que aconteceu? Desesperado pulei da cadeira, mas essa não se mexeu! Nada parecia lógico. Nada fazia muito sentido, eu não conseguia sentir meu corpo... minhas mãos, nada! Apenas tinha a consciência de mim mesmo. Foi quando então olhei para trás e vi... era o meu corpo deitado na câmara de pressão. Foi então que entendi. Não era apenas uma experiência fora do corpo. Era algo mais. Eu não fazia mais parte desse mundo material, eu não estava no lugar certo... eu estava... morto!"

Pablo Aluísio.